Monday, January 19, 2009

Hora do Exercício - Passado ou Presente?

Ahoy!

Vira e mexe o pessoal do Fórum da Jambô me pede para avaliar contos e dar umas dicas para quem quer escrever. Quando a gente faz isso há muito tempo, acaba criando umas regras. A minha mais rígida e chata é: não leio conto escrito na primeira pessoa do presente (e nem na terceira, para falar a verdade).

Por que? Simples: é difícil dar certo. Principalmente na mão de quem está começando. Fora isso, dá trabalho demais para lucro de menos. Se você vai se sacrificar para usar um recurso difícil, sua história precisa ganhar algo com ele. Mesmo assim, 100% das narrativas que vejo usando o tempo presente podiam ser muito bem narradas usando o passado, que é mais cômodo, mais legal, não bate em ninguém e vai para a cama na hora certa sem reclamar.

Hein? Exemplo? Ok, vamos lá. Primeiro no presente:


-Exemplo 1


Ando pelas ruas da pequena cidade de beira de estrada sem saber direito o que fazer. Distante, o Gol 83 fumega semi morto.

Não há uma alma viva, mas resolvo procurar por alguém mesmo assim. Bato na porta de uma casa pequena, recém pintada de branco, mas ninguém responde. Nenhum barulho vem do lado de dentro.


Volto para o meio da rua e vejo ao longe as nuvens negras que se aproximam. Um relâmpago rasga o céu, mas não há trovão para acompanhá-lo. Só aí percebo que meus passos arrastados também não fazem barulho no chão de terra batida. Tento gritar, mas nada acontece.

Na pequena cidade de beira de estrada, o único eco é o silêncio.



Agora o mesmo trecho, no passado:


-Exemplo 2


Andei pelas ruas da pequena cidade de beira de estrada sem saber direito o que fazer. Distante, o Gol 83 fumegava semi morto.


Não havia uma alma viva, mas resolvi procurar por alguém mesmo assim. Bati na porta de uma casa pequena, recém pintada de branco, mas ninguém respondeu. Nenhum barulho vinha do lado de dentro.


Voltei para o meio da rua e vi ao longe as nuvens negras que se aproximavam. Um relâmpago rasgou o céu, mas não houve trovão para acompanhá-lo. Só aí percebi que meus passos arrastados também não faziam barulho no chão de terra batida. Tentei gritar, mas nada aconteceu.


Na pequena cidade de beira de estrada, o único eco era o silêncio.



Certo. Agora, por que um funciona e o outro não?

Primeiro porque no primeiro caso existe uma chance absurdamente enorme de se errar o tempo verbal. O cara começa narrando no presente e, quando vê, está escrevendo no passado sem nem perceber. Isso acontece porque é o modo como estamos acostumados a contar as coisas. Afinal, normalmente as histórias que contamos já ocorreram, certo?

Outro motivo: escrever no tempo presente exatamente do jeito que fiz não acrescenta absolutamente nada à história. Compare os dois exemplo: as informações são as mesmas. E se são as mesmas, para que complicar?

Por último, o exemplo número um soa mecânico, frio e completamente irreal. Convenhamos: ninguém anda pela casa pensando "abro a porta da cozinha e vejo meu gato. Ele mia".

É claro que não é impossível escrever no tempo presente com resultados ao menos satisfatórios. Com treino e cuidado, pode até ser um recurso interessante. O importante é analisar o que isso pode acrescentar ao seu conto, romance ou roteiro. E fazer direito.

A principal vantagem é poder explorar a não-linearidade do pensamento. Dá para narrar o que acontece naquele exato momento e ao mesmo tempo viajar. Tangenciar a narrativa através de observações, relatar acontecimentos anteriores. Nick Hornby fez isso muito bem em Alta Fidelidade (o livro, não o filme. Que também é bom, diga-se de passagem).


Para não ficar só no falatório, resolvi me arriscar e fazer um terceiro exemplo meio às pressas, demonstrando o que pode ser um jeito legal de colocar tudo isso em prática.


-Exemplo 3


Sabe aqueles dias em que você mal abre o olho mas já sabe que alguma coisa vai dar errada? Que de alguma forma uma nuvem negra e pesada se formou sobre a sua vida sem a menor vontade de ir embora, apesar das insistentes e otimistas previsões do tempo no jornal da noite? Pois é. Foi assim que acordei cinco minutos atrás. Com um iceberg do tamanho da Groenlândia flutuando no meu estômago.

Já tá claro lá fora e dá para ouvir o barulho dos talheres na cozinha. Sinal que a empregada já chegou. Maria, ela chama. Ou é Mariana?

Isso também quer dizer que hoje é quarta, que é dia de feira. A barraca do pastel fica bem na frente da garagem. Ou seja: se quiser sair de casa vou ter que pegar um ônibus. Isso, claro, se hoje for mesmo quarta. Qual é mesmo o dia da empregada?

Merda. O telefone.

- Maria! Telefone!

Meu grito de aviso é só para cumprir o ritual de desencargo de consciência. Ela não vai atender. Nunca atende. Cada doméstica brasileira segue um código de honra rígido elaborado pela sociedade secreta das diaristas (que curiosamente inclue as que vêm de quinze em quinze dias, uma vez por mês ou toda semana). E entre as regras mais sagradas está ignorar o toque do telefone. De preferência ouvindo música ruim no volume mais alto possível. Salve a maçonaria das domésticas! Porra, como sou engraçado.

No fim das contas sou sempre eu quem acaba levantado enrolado no lençol, pisando no chão frio, correndo para atender antes que o infeliz desligue. E quer saber o pior? Já sei até quem é. Minha mãe.

Só ela liga no fixo. O filho gasta mil e quinhentos reais em uma porcaria de iPhone e ela ignora, ligando no telefone de casa porque acha que tá economizando alguma coisa na tarifa. Pelo menos não é exclusividade dela. Já vem no código genético de toda mãe. Não dá para culpar.

- Alô. Eduardo?

Errei. Não é minha mãe. Mas a voz é de mulher.

- Sou eu. Quem fala?

- É a Pamela.

- Pam--

- Não posso falar agora. Tem como a gente se encontrar? Hoje de tarde, no metrô Clínicas.

- Claro...eu...

- Ok. Beijos.

- Beijos.

Pamela foi minha namorada por cinco anos. Estudamos juntos do colegial até metade da faculdade. Até em casamento a gente pensou a certa altura. Nada nessa conversa seria esquisito se tivesse acontecido há seis meses.

Naquela época ela foi assaltada em um farol numa ruazinha na Vila Madalena. O rapaz queria carteira, celular, qualquer coisa. Pamela foi abrir a bolsa e tomou três tiros na cabeça. O rapaz achou que ela ia reagir. Quando a polícia e o IML chegaram, tinha pelo menos uns cinco motoristas reclamando do carro parado no meio da rua, impedindo o trânsito.

O telefone continua na minha mão e eu nem percebi. Lá no fundo, a linha continua dando sinal de ocupado...


Não é exatamente
uma obra-prima, mas acho que deu para entender. Se não deu, pelo menos agradeçam por ser de graça.;)

Até a próxima!

Cheers!

T.


PS. Só para não desperdiçar um outro exemplo que acabei fazendo sem querer, aqui vai uma versão dos dois primeiros exemplos com a narrativa na terceira pessoa do presente.

Pedro anda pelas ruas da pequena cidade de beira de estrada sem saber direito o que fazer. Distante, o Gol 83 fumega semi morto.

Não há uma alma viva, mas ele resolve procurar por alguém mesmo assim. Bate na porta de uma casa pequena, recém pintada de branco, mas ninguém responde. Nenhum barulho vem do lado de dentro.

Ele volta para o meio da rua e vê ao longe as nuvens negras que se aproximam. Um relâmpago rasga o céu, mas não hpa trovão. Só então Pedro nota que seus passos arrastados também não fazem barulho. Ele tenta gritar, mas nada.

Na pequena cidade de beira de estrada, o único eco é o silêncio.

6 comments:

Cibele said...

Gostei muito da aula ;)

Muito bom, principalmente para nós que estamos iniciando ^^

Anand said...

Careca, esse post foi fodástico. Excelente dicas para os aspirantes da escrita, fanáticos por background de RPG e blogueiros contistas.

Se você fizer uma série de posts assim, daria um livro fácil, fácil.

Anonymous said...

Muito bom mesmo, além de cutucar legal os aspirantes desgovernados dos fóruns alheios, também ajuda quem já escreve com um singelo "olha só, é mesmo". =)

Kendi said...

Boa Trevisan! Aquele conto nem parece que foi feito as pressas. Muito bem colocada a narrativa.

Shin said...

Muito boa a aula!
Eu fiquei querendo saber o resto do exemplo, se tiver tempo poderia terminar o exemplo e fazer um livreto de 10 paginas para o pessoal poder ler alguma coisa interessante.

Se continuar com essas aulas, terás um frequentador de seu blog!

Abraços!

Leo Vasconcellos said...

Careca muito legal msm esse exemplo, e nada como uma boa aula para nós, pobre diabos que queremos ser escritores ^^ Vou tomar mais cuidado com minha narrativa daqui por diante ;)

Abraço cara o/

Ps¹: Realmente vc devia terminar esse exemplo, ficou muito legal, dá um conto fácil, fácil.

Ps²: Fui na noite de autógrafos do Leonel e tirei foto com vc =DD