Tuesday, March 17, 2009

Conto - UM

Hey!

Vira e mexe aparece alguém aparece por aqui pedindo para que eu poste os contos que tinha em meu antigo (e finado) site, Gatos, Almas e 5 Cents. UM, é um deles. Se desapegar um pouco de seus textos antigos deve ser alog normal para qualquer autor. A cabeça da gente muda, o estilo muda e a gente passa a ver quinhentos defeitos onde antes só via uns dez. Com este texto não é diferente. Há muita coisa que me incomoda, mas ainda gosto de muita coisa também. Principalmente porque, apesar de melancólico como todos os outros escritos nessa época, é um conto mais realista. Sem elementos muito fatasiosos, sem nada de sobrenatural. Coisa rara nos meus textos em prosa.

Justamente por isso acabei resolvendo manter o texto como estava, desde que foi escrito há sei lá quantos anos (o Word me diz que o arquivo é de 2001, mas tenho a impressão de que a história é bem mais antiga que isso), mantendo intactas todas as suas imperfeições. Assim, além de ler uma boa história, você, leitor, ainda pode aprender com as burradas que cometi no passado. Parece um bom negócio não?

Uma curiosidade: não sei por que diabos, resolvi colocar no conto uma daquelas coisas obscuras que ninguém percebe. Um detalhezinho bizarro que só um psicopata descobriria sem qualquer tipo de ajuda (como até hoje ninguém notou, acho que tenho poucos psicopatas entre meus leitores. Não sei ainda se isso me deixa feliz ou decepcionado): cada conjunto de números apresentado na história forma, de algum modo, o número 666. Podem prestar atenção. A brincadeira dura até mais ou menos o meio do texto, o ponto onde o negócio deixou de ser divertido para virar uma encheção de saco.

É isso. Tentem se divertir. E se não gostarem, mintam nos comentários.;)


UM

Eu queria um cigarro.


Provavelmente deve haver pelo menos mil e oitocentas coisas mais interessantes para se pedir nessa hora, mas quem se importa? Quando se chega nesse ponto o lance é seguir o que a gente sente, certo?

Faz exatamente seis meses. Pra falar a verdade faz seis meses, quatro dias, duas horas e seis minutos. Ah, não se supreenda com a exatidão dos números. Minha mãe sempre dizia que eu era bom nesse tipo de coisa. Contas, cálculos. . . nasci com talento para isso. Uns sabem cantar como Elvis Presley, outros jogam basquete como Michael Jordan ou abrem bem as pernas como Tracy Lords e Sharon Stone. Eu nasci com talento pra números. Fazer o que? Dizem que cada um tem apenas o que lhe é devido. E é bem provável que seja isso mesmo. Desde o inicio achei que este era um raciocínio verdadeiro. Pelo menos sempre fez sentido para mim.

Veja meu pai, por exemplo. Trabalhou durante vinte e quatro anos numa porcaria de um frigorífico. Dia e noite, chuva ou sol ele jamais faltou no emprego. Mesmo quando Victoria, gravida de seis meses teve de ser socorrida as pressas por uma ambulância devido a um desmaio (mais tarde descobriu-se que ela tinha um tumor maligno no cérebro e talvez não vivesse ate a véspera do próximo Natal. Uma pena, já que era a mais nova de nos. . . perdemos dois parentes de uma única vez). Mesmo quando, depois de nove anos sem vencer, nosso time ganhou o campeonato estadual por cinco a um e praticamente todos os seres vivos dessa maldita cidade foram ate a praça principal comemorar e soltar fogos de artificio. Mesmo com tudo isso papai jamais deixou de ir ao trabalho.

Até que sua obstinação e fidelidade foi finalmente recompensada. Numa das quarenta e duas vezes em que ele havia sido escalado para ajudar a descarregar a mercadoria (exatamente três dias e nove horas antes de poder se considerar devidamente aposentado), as pecas de boi despencaram do caminhão. Uma parte aterrissou precisamente em cima dele. Talvez a falha não tivesse nem sido do cara que prendeu a carne nos ganchos. Provavelmente meu pai devia estar velho demais para fazer tanto esforço e não tenha agüentado o peso. Mas ele jamais admitiria isso.

Ele não morreu desta vez. Não senhor. Tinha uma "saúde de ferro", como costumava dizer. Mas os duzentos e sessenta quilos de carne morta e congelada ficaram exatamente dezesseis minutos e trinta e três segundos em cima do infeliz. Talvez o peso sozinho não tivesse causado tanto dano, embora tenha despencado de uma altura bastante razoável, mas o frio dormente que emanava daquilo não ajudava nem um pouco.

Depois ficamos sabendo que haviam ocorrido doze fraturas em seis lugares diferentes. Para simplificar a historia, o coitado havia ficado paralítico para o resto da vida. Descontando-se o tom trágico do fato dava ate para rir: era a vingança tardia de pelo menos três dúzias de bovinos assassinados. Se fossemos todos vegetarianos isso provavelmente não teria acontecido. . .

O governo conseguiu uma grana razoável, suficiente para comprar uma cadeira de rodas decente mas bem menos do que precisávamos para adaptar a casa as novas condições. Dava para ter tirado muito mais do frigorifico se pudéssemos ter contado com a ajuda de um advogado mais competente. De qualquer forma, este é o modo como as coisas são.

Dava pena ver o velho se arrastando como uma mosca quase morta pela casa. Era difícil para ele, que havia sido um homem forte e saudável durante todos os seus cinqüenta e cinco anos, ter que se esforçar de maneira sobre-humana para percorrer os míseros treze metros que separavam a nossa casa da loja de discos da esquina. Adorava musica clássica (principalmente Bach) e fazia questão de ir comprar sozinho seus LPs preferidos. Ah, sim. Comprava vinil mesmo. Odiava CDs. Talvez aquelas bolachas pretas hoje quase pré-históricas tivessem algum tipo de magica para o coitado. Tinha um gosto musical refinado ate demais para um simples velho suburbano. . . mas era definitivamente incapaz de mudar seus hábitos.

O mesmo valia para seu comportamento em casa. Havia perdido a capacidade motora das pernas, é verdade, mas fazia questão de manter a postura e a autoridade que sempre tivera. Mandava em tudo e em todos e falava com a voz de um general. As vezes chegava a ser engraçado.

E foi sempre assim. Ate que um derrame paralisou o lado esquerdo da metade útil de seu corpo. Quando a gente contava muita gente achava que era brincadeira. As vezes é difícil acreditar que uma serie de acontecimentos infelizes possa acontecer com uma família como aconteceu conosco. Isso não é tipo de coisa que acontecia com pessoas normais. Não senhor. Só acontecia em alguns daqueles programas televisivos sensacionalistas ou com as "outras pessoas", não e mesmo? Gostaria de saber quem foi o idiota que disse que "um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. . . "

Depois disso ele deixou de ser o homem que conhecíamos. Não era mais meu pai. Era só uma sombra chorosa que se arrastava pela casa do mesmo modo que um verme anda por dentro de uma fruta podre. A partir dai fui eu quem passou a comprar os discos. As vezes papai balbuciava e, com um pouco de esforço, eu conseguia entender seus pedidos mas ,para ele, não era a mesma coisa. Aquela sombra, pois já não era mais um homem, havia perdido tudo o que mais amava na vida. Tudo o que prezava. Nem a autoridade da qual tanto se orgulhava ele havia conseguido manter. A voz de general havia se transformado num suspiro quase ininteligível.

Dava para ver em seus olhos, na postura curvada da cabeça e nos ombros caídos em descaso o quanto seu coração parecia angustiado. O velho patriarca da família estava preso para sempre, mas só eu e ele enxergávamos as grades e as correntes. Mamãe limitava-se a chorar vez ou outra e a cumprir seus desígnios de esposa fiel (embora eu pudesse jurar que, as vezes, pude ouvi-la sussurrando furtivamente palavras doces ao telefone para algum admirador desconhecido. . . ). Meus quatro irmãos simplesmente não se importavam. Talvez Victoria também percebesse se ainda estivesse viva, mas ela havia nos deixado há exatamente um ano.

Papai morreu num sábado de junho. Sua cadeira de rodas não rolou pela dúzia e meia de degraus da escada que vinha dos quartos como era de se esperar. Não mesmo. Li isso num dos livros mais recentes de Stephen King e acredite. . . não e tão fácil de acontecer assim. Alem disso, papai jamais descia. Tudo era levado para ele. Comida, água. . . ate os banheiros ficavam na parte de cima, junto com o aparelho de som e uma minúscula TV preto e branco Panasonic. Papai jamais rolou da escada. Sua morte foi causada pela combinação explosiva de quatro variedades diferentes de tranqüilizantes e dois copos cheios de Jack Daniels.

A parte estranha de tudo era o fato das bebidas terem sido sempre guardadas na parte debaixo da escada. Papai foi encontrado em seu quarto, deitado na cama que o havia acolhido durante uma vida inteira. As janelas tremiam com o som alto e chiado das caixas de som, emitindo o que havia sido outrora uma gravação impecável de Tocata e Fuga em Re Menor pela Orquestra Sinfônica do Estado de Nova Iorque. Ele simplesmente adorava essa musica.

A enfermeira, que havia faltado justamente naquele dia foi dispensada sem maiores cerimonias. Um dia antes da missa de sétimo dia mamãe já podia ser vista de braços dados com Vítor, o dono da Vitrola e CIA, a loja onde meu pai havia fielmente comprado seus discos por tantos anos. Meus irmãos partiram, cada um para seu canto. E eu. . . bem, eu arranjei um emprego.

Passei a trabalhar num asilo. Uma "clinica geriátrica", como eles preferem chamar. Trabalhava cerca de seis horas por dia e tinha pelo menos um dia da semana livre. A clinica não era grande, é verdade (chegava no máximo a sessenta internos), mas era melhor assim. Ficava mais fácil de conhecer todos eles.

Os velhos iam parar lá pelos mais variados motivos. Alguns eram abandonados pela família, outros estavam doentes demais e precisavam de alguém que cuidasse deles vinte e quatro horas por dia. Outros, como a Sra. Jenkins por exemplo, se quer saiam da cama.

Lembro-me do Sr. McMannaman, que havia sido vitima de um derrame cerebral tão violento que seu corpo inteiro havia ficado paralisado. Somente seus olhos se mexiam e alimentação era feita através de uma sonda ligada diretamente ao estômago. A cama tinha um buraco que se ligava a uma enorme bacia através de um cano. Depois de um tempo seu intestino e bexiga deixaram de funcionar de maneira normal e se tornaram tão imprevisíveis quanto a previsão do tempo. Este foi o único jeito que encontramos para que o homem pudesse fazer suas necessidades com o mínimo de higiene.

Algum tempo depois fiquei sabendo que ele havia sido um dos grandes soldados da Segunda Guerra, do lado dos mocinhos. Seu nome não aparecia nos livros de historia, mas as medalhas que ele havia ganho forravam a parede norte do quarto, bem de frente para ele. E tudo que o velho McMannaman podia fazer era olhar para o os frutos de uma vida inteira dedicada a seu pais, enquanto uma enfermeira ,provavelmente mais nova que sua filha, recolhia a enorme bacia de fezes e urina (que tinha de ser retirada impreterivelmente de seis em seis horas e lavada em menos de cinco minutos, uma vez que tínhamos apenas uma daquelas).

A verdade é que, independente do motivo ou doença que os trazia ali, todos eles tinham o mesmo tipo de olhar. Um olhar parado e desinteressado, como o de um paciente sentado eternamente na sala de espera de um dentista psicopata, de um jogador de futebol nos minutos finais de uma partida perdida ou de um peixe que simplesmente desiste de se debater ao perceber que esta fora da água. Não é irônico, que todos aqueles que haviam feito tanto numa vida inteira, fossem obrigados a se arrastar injustamente por cada milímetro na corrida da vida durante os poucos metros que faltavam para a linha de chegada?

O fato e que eles sabiam disso. Tinham plena consciência e não podiam fazer nada. Absolutamente nada. Tudo o que podiam fazer era olhar e olhar. . . para o nada. Para um futuro que não viria. Para um final de vida sombrio, doloroso e humilhante. Para o prolongamento de uma existência que já havia cumprido o seu propósito. Todos tinham o mesmo olhar.

Do mesmo modo que meu pai naquele sábado de junho.

Do mesmo modo que ele observava a janela do quarto no momento em que eu lhe trouxe os quatro comprimidos e a garrafa de uísque. E acredite, posso jurar que ,momentos antes de sua cabeça tombar sobre o peito e a sinfonia de Bach emitir seus gloriosos acordes, pude ver um sorriso cruzar seus lábios. Não leve, e discreto como ele mesmo havia sido na flor de sua juventude, mas grande, satisfeito e decidido. Como o de quem sente a alegria do dever cumprido.

Podem dizer o que for, mas com um único gesto eu trouxe a paz que ele tanto queria. E fiz, em menos de cinco minutos mais do que nossa família inteira havia feito por ele durante toda a sua vida.

Acho que todos em casa sabiam o que eu havia feito. Mamãe, meus irmãos. . . ate mesmo a enfermeira. Todos sabiam. E nunca fizeram ou disseram nada. E sabe por que? Porque simplesmente não davam a mínima. Tinham anos e anos pela frente e provavelmente tinham coisas mais importantes para se preocupar do que com a morte de um velho inútil e paralítico. Mesmo que ele tivesse terminado daquele jeito justamente porque jamais admitiu que faltasse roupa, comida ou qualquer outra coisa em nossa casa por falta de dinheiro. Percebe o quão injustos podemos ser?

Foi por causa de tudo isso que disse ainda durante o julgamento, que meu pai havia sido o motivo de tudo. Foi a sua visão que me inspirou e me deu forcas para fazer o que alguém deveria ter feito muito antes de mim.

Foi exatamente por causa dele e da lembrança de sua lenta e dolorosa decadência que eu fiz o que fiz.

Por ele que entrei na clinica sorrateiramente naquela madrugada de sábado. Por ele abri cuidadosamente os lacres dos bujões de gás da cozinha tamanho industrial e tranquei todas as portas e janelas.

E por ele me afastei a uma distancia segura, coloquei uma moeda no telefone publico e liguei para a clinica, esperando apenas o momento em que a faisca da luz elétrica acesa por um empregado no momento em que fosse atender o telefone provocasse a explosão.

Você provavelmente deve ter lido sobre isso nos jornais. Duas enfermeiras e todos os internos morreram quase que instantaneamente. De acordo com os legistas a explosão foi tão violenta que não houve se quer tempo para que as vitimas sentissem o mínimo de dor. Só restaram cinzas, nada sobrou para ser enterrado.

Naquela noite eu chorei como uma criança, sentado na calcada em frente a clinica, vendo cada centímetro do lugar ser devorado pelas chamas e observando as almas daqueles que eu havia livrado da morte em vida dançando em meio a fumaça negra e subindo em direção ao Céu. E ali, ainda extasiado com a visão magica de tudo aquilo e incapaz de falar uma frase completa sem ser interrompido por violentos soluços, foi que a policia me encontrou. Há exatamente seis meses, quatro dias, três horas e cinco minutos.

Me chamam de assassino, de porco, de desalmado. Dizem que não tenho coração, que sou desajustado e não sirvo para viver em sociedade. Mesmo assim meu rosto esta em todos os jornais, é capa da Time, da Newsweek e de tantas revistas que eu provavelmente não seria capaz de citar o nome de todas durante o pouco tempo que ainda tenho. As emissoras me querem em seus programas de entrevistas e um diretor de cinema parece interessado em filmar minha "vida"(acrescentando provavelmente alguns delitos menores como estupro ou desejo sexual pela mãe a minha diminuta ficha de condutas ilícitas. Algo para chamar mais publico, entende?). Fazem tudo isso e eu realmente não ligo. Simplesmente não significa nada para mim.

Sei o que fiz, porque fiz e estou satisfeito comigo mesmo. Não me importo com o que pensam ou o que acham do meu feito. Não me importo. Vivi minha vida da melhor maneira possível e segui os preceitos de tudo aquilo que acreditava. Se ISSO é ser um monstro. . . então muita gente devia tentar. Acredite, não e tão ruim quanto se pensa.

E quando finalmente entrar naquela sala e estiver estendido na cama em forma de cruz. . . quando meus braços forem presos pelas correias de couro e as agulhas forem espetadas sem a menor delicadeza em minhas veias saltadas. . . quando as substancias químicas entrarem na minha corrente sangüínea e as convulsões finalmente começarem. . . eu não direi absolutamente nada. Abdicarei do direito de fazer uma ultima declaração ao mundo em troca de um único pedido:

Quero ter forcas para sorrir.

Um sorriso, satisfeito e tão decidido quanto o de meu pai.

Espero sinceramente que os parentes das "vitimas", aqueles que foram gentilmente convidados pelo estado para presenciar minha gloriosa punição, possam vê-lo. E que, a cada noite do resto de suas vidas, cada um deles se lembre daquele sorriso. . . ate que estejam velhos demais para sonhar, se mexer, ou ter uma vida decente sem ter que depender de estranhos ou de parentes distantes e insensíveis. Só nesse momento, sozinhos e abandonados num quarto com cheiro de mofo, fezes urina é que eles irão entender. E ai talvez seja tarde. . .

Quanto a mim, parto tranqüilo e com a alma infinitamente mais leve que a daqueles que deixo para trás. Pode acreditar.

Afinal de contas, é como se diz. Cada um tem apenas o que lhe é devido.

Nem mais.

Nem menos.


Cheers!

T.

3 comments:

Rodrigo "Qu4resma" said...

Freaking awesome.
Nem mais.
Nem menos.

=P
Cyaz

Leo Vasconcellos said...

fenomenal, muito bom msm.

Anonymous said...

Trevisan, eu estou com vontade de republicar este conto no meu blog (caralho, faz tempo que li isso e nem lembrava como era bom. Apesar das "falhas"). Obviamente com link e os devidos créditos. OK contigo?